sexta-feira, 19 de junho de 2015

Um gostinho do livro Os Índios e o Brasil: Introdução


Introdução

O Brasil e os índios, desde 1500, formam uma dupla incombinável. A relação entre ambas as histórias é claramente inversa: à medida que o primeiro cresce, o outro decresce. Independentemente do período histórico – seja colônia, monarquia, república, ditadura ou democracia –, nota-se sempre a má sina dos índios: pressões sobre suas terras, desleixo com sua saúde e sua educação, desrespeito, injustiça e perseguições que sofrem, vindas de todos os quadrantes da nação (inclusive, suspeitamos, do nosso próprio íntimo derrotista). Poderíamos facilmente chegar à conclusão de que não há lugar no Brasil para os índios. Não no Brasil de hoje.

A bem da verdade, a relação que os índios têm com o Brasil, sob tantos aspectos, não é pior nem melhor do que trinta ou oitenta anos atrás. Os mesmos problemas de séculos passados permanecem: má vontade e desleixo das autoridades para com os habitantes autóctones deste país, política indigenista dúbia, ambição por parte das elites político-econômicas e falta de solidariedade humana. Um número expressivo da população no Brasil insiste em condenar os índios à margem da história, considerando-os sociedades inviáveis e um empecilho à consolidação da civilização brasileira. Em contrapartida, vem aumentando o número de brasileiros que simpatizam com os índios e que os reconhecem senhores originários dos territórios nos quais habitam, para quem a nação como um todo tem um gigantesco débito a resgatar. Podemos nos regozijar de que tal simpatia não é apenas comiseração, mas, sim, o início de uma conscientização comprometida que vê os índios como parceiros e aliados do potencial cultural brasileiro.


Não resta dúvida: o povo brasileiro conhece mais o índio1 agora do que há alguns anos. Esse fator foi determinante para aumentar o seu nível de consciência política ao ver a luta pela sobrevivência indígena como paralela à sua pela ampliação dos seus direitos fundamentais de ser humano e cidadão de uma nação moderna.

A reversão histórica na demografia indígena é o que há de mais surpreendente e extraordinário na relação entre os índios e o Brasil. Não é mais temerário afirmar, como o fizemos em primeira mão há 25 anos, que os índios, afinal, sobreviveram, e que esta é uma realidade concreta e permanente. É um tanto impiedoso valorizar em demasia o termo
sobrevivência para um quadro histórico em que 90% da população indígena originária desapareceu num período de pouco mais de 500 anos, se comparado com o ano de 1500, quando havia cerca de cinco milhões de índios no território em que é hoje o Brasil. Não se pode falar nessa sobrevivência sem se dar conta do quanto foi perdido durante esse período.

Hoje são cerca de 530 mil índios que vivem em terras indígenas no país, e por volta de 360 mil que estão nas cidades, de acordo com o Censo 2010 do ibge. Porém, em meados da década de 1950, segundo um conhecido estudo de Darcy Ribeiro, os índios somavam cerca de 100 mil indivíduos e estavam em permanente declínio. Não somente morreram e foram mortos milhões de seres humanos, como se extinguiram para sempre, calcula-se, mais de cinco centenas de povos específicos, de etnias e culturas humanas produto de milhares de anos de evolução e adaptação ao meio ambiente físico e social em que viviam. A humanidade perdeu com isso não só os valores e conhecimentos que, definitivamente,
deixaram de fazer parte de seu acervo, como se ressente pela diminuição da diversidade biológica que possibilita mais chances de sobrevivência ao Homo sapiens.2

O fato é que há fortes indícios de que as populações indígenas atuais vêm crescendo nas últimas cinco décadas, surpreendendo as expectativas alarmantes e as consideradas mais realistas de antropólogos, historiadores e indigenistas de tempos atrás. Alguns povos indígenas, como os Guarani, os Terena, os Guajajara, os Tikuna, os Makuxi e os Mura,
que têm mais de duzentos anos de contato com o mundo luso-brasileiro, parecem ter adquirido reforço biológico e cultural para defender-se das adversidades mais brutais que lhes foram impostas até agora, além de já terem alcançado populações de mais de vinte mil indivíduos. Muitos que haviam sofrido quedas expressivas, de mais de 50% de suas populações originais, deram um salto de crescimento, a exemplo dos seguintes povos: Karajá, Munduruku, Canela, Kayapó, Xavante etc. Outros mais, como os Urubu-Kaapor, Gaviões-Parkatejé, Kayabi, Juruna, Yawalapiti,Nambiquara, Tapirapé etc., que estiveram próximos de ser extintos, se recuperam e se estabelecem biológica e culturalmente.

Quadro 1 – Relação das 15 maiores populações indígenas em 2010
População indígena com indicação das 15 etnias com maior número de indígenas,
por localização do domicílio – Brasil – 2010
Número de ordem
Total Nas terras indígenas Fora das terras indígenas
Nome da etnia População Nome da etnia População Nome da etnia População
1 Tikuna 46045 Tikuna 39349 Terena 9626
2 Guarani Kaiowá 43401 Guarani Kaiowá 35276 Baré 9016
3 Kaingang 37470 Kaingang 31814 Guarani Kaiowá 8125
4 Makuxi 28912 Makuxi 22568 Mura 7769
5 Terena 28845 Yanomami 20604 Guarani 6937
6 Tenetehara 24428 Tenetehara 19955 Tikuna 6696
7 Yanomami 21982 Terena 19219 Pataxó 6381
8 Potiguara 20554 Xavante 15953 Makuxi 6344
9 Xavante 19259 Potiguara 15240 Kokama 5976
10 Pataxó 13588 Sateré-Mawé 11060 Tupinambá 5715
11 Sateré-Mawé 13310 Munduruku 8845 Kaingang 5656
12 Munduruku 13103 Kayapó 8580 Potiguara 5314
13 Mura 12479 Wapixana 8133 Xukuru 4963
14 Xukuru 12471 Xakriabá 7760 Tenetehara 4473
15 Baré 11990 Xukuru 7508 Atikum 4273
Fonte: ibge, Censo Demográfico 2010.

Porém, há ainda o risco de muitos povos indígenas continuarem a sofrer reduções populacionais e chegarem a pontos sem retorno, como já aconteceu nos últimos 100 anos com os Xetá, do Paraná, os Krêjé, do Maranhão, os Kayapó do Pau d’Arco, do Pará, os Baenan, do sul da Bahia, e muitos mais que, para sobreviverem individualmente, tiveram
de se mesclar física e culturalmente com outras etnias mais numerosas. Os casos mais dramáticos são: os Avá-Canoeiro, do Tocantins, que somam menos de 12 pessoas; os Juma, apenas 5 deles, todos vivendo entre os Uru-eu-wau-wau, em Rondônia; os 2 irmãos, chamados pela Funai de Auré e Aurá, encontrados no Pará, que hoje vivem no Maranhão,
sem se saber a que povo pertenceram; e o chamado “índio do buraco”, um único sobrevivente de um povo atacado já na década de 1970, no sudoeste de Rondônia, por capangas de fazendeiros, que, de tanto pavor, não quer falar com ninguém e vive escondido numa palhoça dentro da qual cavou um buraco na terra. Há, pelo inverso, aquelas etnias que estavam praticamente desaparecidas, de quem não se ouvia mais falar havia muitos anos, como os Guató, do alto rio Paraguai, os Puruborá, de Rondônia, que de repente reapareceram, os mais velhos ainda falando suas línguas, a exigir um lugar ao sol. Há também comunidades de lavradores no sertão nordestino e ribeirinhos da Amazônia,
antes vivendo como “caboclos”, que, por motivos diversos, “ressurgem”, assumem uma identidade indígena na base da convivência comum e na lembrança de terem sido índios no passado, de partilharem de rituais ou hábitos diferenciados dos seus vizinhos. São muitos esses casos e seu ressurgimento é explicado por uma teoria conhecida como “etnogênese”,
originalmente aplicada a casos de populações urbanas em cidades africanas que recriam sua antiga identidade tribal. As adaptações dessa teoria no Brasil se dão pela especificidade dos casos brasileiros. Nos últimos 15 anos surgiram povos como os Tupinambá, no sul da Bahia, os Tumbalalá, no médio rio São Francisco, os Tabajara, na Paraíba, os Anacé e mais dez grupos diferentes no Ceará, e até os Apicuns e Borari, na foz do rio Tapajós. Por fim, há de se mencionar aqueles povos indígenas que continuam a viver como sempre viveram, antes da chegada de portugueses ou brasileiros, nas suas florestas ermas, muitas vezes fugindo do contato com outros índios e, acima de tudo, de brasileiros. A
eles dei o cognome de índios autônomos, por viverem autonomamente; mas, na literatura indigenista e antropológica ainda são chamados de isolados ou até de arredios, o que consiste numa atitude brasilo-cêntrica, com permissão da má expressão.

Na amplitude de situações de inter-relacionamento, que vai desde os índios ressurgentes do Nordeste – quase todos fazendo parte de sistemas socioeconômicos regionais – até os índios autônomos, que permanecem à margem ou nos interstícios da expansão econômica brasileira, os índios brasileiros, ou os índios que habitam o Brasil, lutam à sua maneira por um lugar na comunidade dos homens, sem ter tanta clareza de qual seria esse lugar. Nem nós, que, do outro lado (do mais seguro), tentamos compreender o sentido e a marcha da história da humanidade, especialmente do Brasil, sabemos o que poderá vir a acontecer. Somente que o quadro étnico brasileiro não é terminal, como se postulava antes (e muitos assim o queriam). 

O delineamento de uma visão e de uma estratégia para se estabelecer a continuidade e a permanência segura dos povos indígenas no Brasil é complexo e ardiloso – pois a questão indígena se movimenta por forças adversas de grande poder de destruição –, sustentado por forças menores de defesa, influenciado por acontecimentos indecifráveis no tempo imediato de uma decisão a ser tomada. Por exemplo, o que significaria para uma população indígena relativamente pequena oaporte de recursos monetários advindos de royalties pela exploração de minérios em suas terras, como querem alguns? A sua capitalização ou o seu aniquilamento cultural? O que significará a presente atitude do governo Dilma Rousseff, através do Decreto 303, publicado pela Advocacia-Geral da União, de aceitar as ressalvas determinadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – no sentido de não ter de consultar os índios ao se determinar a construção, em terras indígenas, de estradas, linhões de transmissão de eletricidade, ou a instalação de unidades militares?

O presente indígena está diante de nós, como um fenômeno social real, porém difícil de compreender e cheio de ações e motivações inesperadas. Assim, voltar-se para o seu passado é imprescindível a fim de se cotejar com o presente e compreendê-lo melhor. Mas também só faz sentido se projetado num futuro próximo ou vislumbrável, pois está condicionado a tantos outros acontecimentos e forças sociais que o exercício da prospectivização se torna inevitável para se propor ideias e soluções possíveis à sua existência. A dinâmica de seu relacionamento, que se dá com quase todos os segmentos da nação, e o presente que se constituiu a seu respeito deixam claro que os índios são uma questão de âmbito e interesse nacionais. Não se pode fugir ao índio, nem que o Brasil vire potência mundial. Propomo-nos a compreendê-lo em sua problemática mais ampla e discutir caminhos para a sua permanência no seio da nação brasileira, como parte essencial e integrante do seu povo.

A amplitude da questão indígena

A questão indígena nasceu com o descobrimento do Brasil, da América em geral, e continuará a existir enquanto houver povos indígenas. Diz respeito ao índio e suas relações com o mundo que se criou ao seu redor e à sua revelia, compungindo-o à condição de estranho na sua própria terra, forçando-o até à morte ou ao desaparecimento cultural.

O índio é o centro da questão, mas a sua composição abrange quase todos os segmentos nacionais, seja por contraposição, seja em complementaridade ou até por ascendência. Suas transformações se dão desde o tempo em que os índios eram uma ameaça real ao estabelecimento colonial português e, por isso, combatidos em guerra, passando pelas
relações de escravidão e servilismo, pela instituição do paternalismo (que nasce no Império e se consolida na República), até a crise de libertação que caracteriza os tempos mais recentes. A questão caminha com o desenvolvimento do país, quase sempre em relação inversa – eis o sentido da sua tragédia. Que isso seja considerado um fato normal e
inexorável – eis a sua racionalização, tão entranhada no pensamento científico quanto no popular. Para compreendê-la melhor, é preciso recolocá-la na história, seguir os seus passos e os seus percalços, observar a sua dinâmica e os seus pontos de equilíbrio – nunca, porém, de harmonia entre as partes –, e daí retirar as lições que apontem outras
possibilidades no presente e para o futuro.

A questão indígena se processa numa dimensão histórica mais ampla do que aquela que define a história brasileira ou mesmo a americana em geral. Ela é a representação concreta de um intercruzamento que infelizmente se dá como embate entre dois tipos de civilização, dois grandes complexos de possibilidades do ser humano. Por um lado, a civilização europeia, síntese e fulcro dispersor das experiências culturais de 10 mil anos de existência de centenas de povos que, de uma forma ou de outra (quase sempre pelas guerras e pela
opressão, mas também pelo diálogo e pela difusão do conhecimento), produziram um complexo dinâmico que estava em expansão incontida a partir do século xv. Essa civilização não se restringe ao continente europeu propriamente dito, mas engloba elementos de todo o Velho Mundo, a Ásia, o Oriente Médio e o Mediterrâneo africano. Isso fica muito claro não somente porque essa civilização é formada pelo acervo de todos esses
recantos, mas também porque o seu povo, o seu material humano, fez evoluir um sistema imunológico como um todo. Essa unidade biológica foi fundamental quando do confronto com a civilização do Novo Mundo. Do outro lado, a civilização das Américas, também com um período de desenvolvimento idêntico, mas sem uma integração completa entre os seus fulcros de criatividade e poder. Os grandes complexos culturais mexicano, guatemalteco e andino não se expandiram além de suas fronteiras, nem interligaram os complexos intermediários, como as culturas do deserto norte-americano e os cacicatos da América Central e dos Andes setentrionais. No século xv as civilizações dos Astecas e dos Incas buscavam expandir-se e alcançar novas fronteiras, mas sem grandes resultados. A tentativa
incaica de penetrar na Amazônia fora frustrada e só a custo de muita força militar é que asseguraram algumas posições no planalto boliviano e nas encostas dos formadores do grande rio. Na verdade, duzentos ou trezentos anos antes, essas civilizações haviam alcançado maior expansão e esplendor. Os demais povos viviam em sistemas políticos mais simples e defendiam a sua liberdade de qualquer jeito.

Às Américas faltaram o cavalo (que aqui se havia extinto 10 mil anosantes), a descoberta do ferro, a aplicação das utilidades técnicas da roda e, sobretudo, o contato com o desenvolvimento do Velho Mundo, especialmente com suas doenças. O sistema imunológico dos povos americanos não conhecia as terríveis bactérias, vírus e parasitas que durante anos haviam sido o flagelo dos povos de lá, mas que por isso mesmo
adquiriram as defesas naturais para o seu combate e a sua sobrevivência. Ao trazer esses flagelos para o Novo Mundo, transportaram a sua maior arma.4 Esse aspecto universal da questão indígena parece a todos como em vias de conclusão. Talvez uma nova civilização, um novo complexo cultural, juntando os potenciais de todas as suas culturas constituintes,
esteja em formação no nosso continente, certamente com influência preponderante
do seu vencedor. Essa é, sem modéstia, a grande visão utópica de Darcy Ribeiro. Restam, no entanto, alguns enclaves da civilização originária, nos Andes, no México, no deserto americano, enfim, no Brasil. Quem vê a força inerte que se contém nos rostos dos Quéchua
e dos Aymara, do Peru, da Bolívia e do Equador, sente que talvez nem todas as fichas estejam contadas. Mas não se liga muito a isso, embora a experimentação que ocorre na Bolívia venha a ser prenúncio de novas formações sintéticas de civilização.

Quanto ao Brasil, os 230 a 240 povos que aqui estão têm um peso menor no cômputo geral. Parece que poucos acreditam neles como possibilidade de continuidade histórica ou renovação cultural. São sobreviventes de uma tragédia universal que se realizou na forma de um holocausto, dentro de um território e a propósito da formação de uma nação. Seu peso atual, como de há muitos anos, não se pondera pelos seus números, mas pela qualidade que empresta ao sentimento da nacionalidade brasileira.

Uma questão ideológica

A permanência da questão indígena deve-se não somente à lembrança histórica, à presença dos sobreviventes e à continuidade de sua estrutura, mas também à sua influência ideológica e na formação da nacionalidade brasileira. A despeito da magnitude da violência que foi usada contra os povos indígenas, essa realidade inquestionável se deu
de uma forma não totalmente consensual. É mais do que interessante notarmos que dúvidas morais e forte sentimento de culpa pelo que faziam ou viam fazer acometiam muitos segmentos da civilização europeia ou, especificamente, da nação portuguesa, ao destroçar aldeias e reduzir os índios à condição de seres inferiores. Não somente as forças da Igreja Católica (que, sob o ponto de vista histórico, fazia parte do projeto português, acatava-o e promovia-o à sua maneira), mas a própria Coroa portuguesa – isto é, o rei e a burocracia estatal e, até em algumas ocasiões, os próprios colonos (sobretudo depois que sentiram o
perigo já controlado) – demonstrou um interesse especial pelos índios: olhavam-nos de uma forma sutil e mais respeitosa do que o faziam com os negros, por exemplo, reconhecendo naqueles algumas qualidades e alguns direitos. Certamente, não é por outro motivo que o primeiro conjunto de leis portuguesas em relação aos índios, contidas no Regimento de 1548, de Tomé de Souza, recomenda explicitamente que os índios devam ser tratados com respeito e amistosidade.5 Veremos mais adiante que a principal característica da política indigenista da Coroa é uma atitude de má-fé quanto à posição que o índio deveria ter no
projeto colonial – se escravo, se livre, conquanto que fosse súdito. Essa característica atinge a Igreja, secular e monástica, ora de braços dados com os inimigos dos índios, ora defendendo-os sob perigo de desacato, punição e expulsão, pela desobediência às ordens da Coroa e pela rebeldia aos poderes coloniais. Os colonizadores queriam ganhar seu
espaço econômico e político, achavam os índios infensos ao trabalho rotineiro e forçado – portanto, um empecilho à sua expansão –, mas reconheciam a sua existência livre. Reduziam-nos à natureza, à animalidade para destroçá-los quando precisavam de seus bens patrimoniais; depois, criavam leis para integrá-los.

Essa perniciosa atitude adquire contornos mais delineáveis quando o Brasil se torna independente e urge se criar uma identidade própria e dar à nação um projeto. José Bonifácio de Andrade e Silva, o Patriarca da Independência, com seus “Apontamentos para a Civilização dos Índios Bárbaros do Brasil”, escrito em 1819 e apresentado à Assembleia
Constituinte de 1823, inaugura a preocupação brasileira em encontrar o lugar adequado para os índios, tanto no sentimento nacional quanto no próprio território. Liberais e conservadores, senhores de terra e a pequena classe média que se formava passaram a travar uma batalha de palavras e conceitos que terminou se concretizando em leis, preconceitos e idealizações, algumas das quais ainda hoje têm repercussão.6 No início, as discussões e as propostas são centradas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, apresentadas por literatos brasileiros e estrangeiros, como o naturalista alemão Carl von Martius, que aqui estivera entre 1817 e 1821, e que sugeriu, para a formação étnica do Brasil, a imagem de um grande rio, no qual o índio representaria um dos três afluentes, junto com o branco e o negro.7 Daí por diante, essa imagem e suas variações se mantêm na consciência nacional de uma forma indelével, mesmo entre aqueles que são declaradamente anti-indígenas, como o historiador Francisco Adolpho de Varnhagen, o
cientista Hermann von Ihering e tantos mais que se juntam na crença da inviabilidade histórica do índio no Brasil. Liberais, românticos, positivistas, militares, a Igreja e a chamada sociedade civil, bem como o próprio Estado, em um momento ou outro, já foram grandes defensores dos interesses indígenas. Hoje amigos, amanhã inimigos. Em comparação com países como a Argentina, a Venezuela, a Colômbia e os Estados Unidos, o Brasil se apresenta vantajosamente com um padrão de ideologia e de políticas indigenistas ambíguo e instável, o que demonstra a sua busca por um equacionamento da questão, que reflete
a sua própria busca de identidade. (A comparação com outros países, como Paraguai, Bolívia, Peru, Equador, México etc. é mais difícil devido à composição e densidade étnicas muito diversas do caso brasileiro.) Desde a independência, não há no Brasil uma política de extermínio, assim como ocorreu na Argentina e nos Estados Unidos. É verdade que em
algumas províncias brasileiras já se extinguiram grupos indígenas simplesmente por decreto, como o fez o presidente da província do Ceará na década de 1860. Também é fato que a Lei de Terras de 1850 foi mais fundamental nesse processo de se esbulhar o índio de suas terras, ao não registrá-las e, assim, inviabilizar ou destruir dezenas de aldeias por todo
o país. Por sua vez, a própria lei indigenista do Império, que criou as Diretorias dos Índios e manda proteger as aldeias, civilizar e catequizar os índios, a partir de 1845, também falhou em garantir terras aos índios que já estavam no processo de integração na nação. Nesse sentido, o Brasil é mais sutil que a Argentina, país que, em 1879, simplesmente enviou
tropas para destruir os índios ao sul do rio Colorado, ou que os estadunidenses,
os quais os expulsam de toda a região leste do Mississipi.8 Os efeitos e as consequências das atitudes políticas brasileiras são diferentes mesmo assim. A influência do positivismo sobre os militares e republicanos os levou à criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), já na República, em 1910, cuja máxima “Morrer se preciso for, matar nunca”, adotada pelos sertanistas e indigenistas em relação aos índios arredios ao contato, constitui uma das poucas contribuições brasileiras a uma filosofia humanista ou a uma forma de cristianismo tupiniquim. Assim, a dimensão ideológica do indigenismo nacional é fundamental para se entender os problemas atuais da questão indígena. O índio está
no cerne da consciência nacional – eis a sua força maior de sobrevivência, bem como a sua instabilidade, pois essa consciência nem sempre se coaduna com a realidade.9

Atualidade da questão indígena

A questão indígena se desenrola na história brasileira com um saldo obviamente negativo para os índios. A nação brasileira se constrói sobre o patrimônio territorial dos cinco milhões de índios que aqui havia, suga o seu sangue e o transforma em “ouro vermelho” (na expressão do Padre Antônio Vieira), e recebe de doação e por osmose algumas das suas principais características culturais. Em troca, não os integra com autonomia e liberdade nem resolve seus principais e atuais problemas de sobrevivência: não somente falta um certo número de terras a ser demarcadas, como aquelas já homologadas e registradas como Patrimônio da União ainda são ameaçadas de serem revogadas por mudanças na legislação e invadidas ou assediadas por interesses econômicos. Embora suas condições de saúde tenham melhorado substancialmente, que se percebe no seu crescimento demográfico, muitas condições básicas de saúde continuam infinitamente inferiores em relação ao atendimento dos demais brasileiros, a exemplo do índice de mortalidade infantil que ainda se mantém o dobro da média brasileira (25% para 52%). No item educação escolar e oportunidades de desenvolvimento pessoal, a defasagem entre índios e não índios é assustadora!

Uma estrutura dinâmica de poder infinitamente desigual é formada por muitos e variados elementos que constituem a questão indígena no presente, tais como os povos indígenas, o Estado, a Igreja, a situação de desenvolvimento socioeconômico e suas forças de enfrentamento, os militares, os intelectuais (antropólogos, jornalistas, literatos, advogados
etc.), a classe média urbana, os fazendeiros, os posseiros. O que motiva essa estrutura varia no tempo: a mão de obra, a expansão agrícola, o valor da terra, os minerais. Está mais do que claro para todos que a terra e suas riquezas, como mercadoria e como reserva de valor, atualmente, são a grande propulsora da dinâmica da questão indígena. Os povos
indígenas retêm em seus direitos a posse efetiva, reconhecida oficialmente ou em potencial de aproximadamente 13% do território nacional. Desafiam, assim, políticas desenvolvimentistas autoritárias, interesses mineradores e madeireiros, empresas agropecuárias sustentadas por benefícios fiscais e financeiros, o capital nacional e o multinacional. Esses interesses dominantes, de maneira direta ou por intervenção política,
corroem qualquer tentativa que parte do governo ou fora dele para estabelecer os parâmetros da questão indígena a partir da definição final da demarcação de todas as terras indígenas. A expectativa é, sem dúvida, de que, assim permanecendo, as terras indígenas da Amazônia, ou onde houver interesse econômico de peso, possam vir a ser utilizadas à revelia de seus legítimos senhores. As hidrelétricas, a política de segurança nacional, a abertura de terras ao capital beneficiado e aos despossuídos de outras regiões também integram o quadro da problemática atual.

A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão do governo encarregado da questão indígena, criada, entre outros motivos, com a expressa função de demarcar todas as terras até 1978 (cinco anos após a lei do Estatuto do Índio), depois até 1993 (cinco anos depois da promulgação da Constituição Federal brasileira), obviamente não cumpriu sua missão. Por quê? Primeiro, porque não é fácil, tantos são os problemas. Depois, em razão da proverbial incompetência burocrática brasileira, por grandes dificuldades de retirar invasores, por interpretações jurídicas sobre o que é terra indígena, mas também por um motivo muito próprio da questão indígena. Qual seja, uma boa parte das terras indígenas até agora ainda não demarcadas somente foram assim reconhecidas pouco tempo antes (e até depois) dos referidos documentos legais. Em anos recentes, como detalharemos mais adiante, o judiciário brasileiro tem expedido interpretações sobre o que é terra indígena que vão contra
o entendimento previsto nas normas estabelecidas pela Constituição Federal e pelas interpretações da Funai. O auge dessas intervenções se deu em 19 de março de 2009, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) pronunciou-se sobre uma série de pontos relativos à demarcação, aparentemente com algum nível de flexibilidade de interpretação, já que os tribunais regionais passaram a hesitar na emissão de suas decisões, sempre sujeitas a novos reclamos. Dessa forma, a Funai, e por extensão o Estado brasileiro, não consegue concretizar uma política indigenista estável, com regras e normas que assegurem um novo lugar e um novo papel para os índios no panorama político-cultural nacional. Por outro lado, permanece uma estranha ambiguidade, para não dizer dubiedade, a respeito do caráter jurídico do índio brasileiro. Se a Constituição Federal garante todos os direitos de cidadania aos grupos indígenas e ainda os admite como culturas diferenciadas e com direitos específicos – por exemplo, o direito da posse coletiva e o usufruto exclusivo da terra –, em contrapartida, o novo Código Civil, de 2000, que retirou o estatuto de “capacidade jurídica relativa” (e, portanto, da minoridade legal do índio e da tutela do Estado), deixou para o legislativo a determinação sobre a nova condição jurídica do índio. Consequentemente, nunca se sabe se uma decisão ou ato político ou econômico indígena tem valor absoluto ou relativo. Enquanto isso, os ganhos obtidos pelos índios no conceito
da opinião pública nacional, através da luta consciente por seus direitos às terras, à saúde e à educação se confundem com a desestruturação administrativa, funcional e ética da Funai e as propostas diversionistas de outros segmentos do Estado por franquias simbólicas que pouco valor têm para a solução dos problemas reais dos índios. A visão nacional, a simpatia pelo índio e a própria política indigenista perdem com isso. Veremos mais adiante que este é um momento histórico especial na questão indígena que traz esperanças e perigos, uma época de transição sobre cujos resultados finais não temos ainda clarividência.

Nota metodológica e bibliográfica

Este livro busca cumprir a tarefa de interpretar as relações entre os índios e a nação brasileira à luz do dado histórico mais importante dos últimos tempos – o crescimento demográfico das populações indígenas – e do surgimento de uma nova autoconsciência indígena em relação à sua posição no Brasil e no mundo. Ele pretende analisar, anunciar cientificamente e avaliar as consequências desses acontecimentos de grande significado para os índios e para o Brasil.

Estamos fazendo uma revisão cautelosa da história indígena brasileira, aprofundando-a por uma nova visão estratégica da formação do Brasil, para dela extrair os fundamentos sociológicos e antropológicos que nos permitam demonstrar como e por que a grande maioria dos povos indígenas se extinguiu, e como e por que uma pequena minoria sobreviveu e aos poucos vem se recuperando, lutando para traçar o seu futuro. A partir dessa visão metodológica que enfoca a história pela perspectiva do índio que sobrevive (que é, de fato, o que nos interessa), percorremos o caminho desde a descoberta do Brasil, com os olhos de quem vive entre dois mundos: o seu, propriamente dito – de brasileiro
comum e de brasileiro intelectual e político – e o do índio, ou pelo que dele lhe é dado saber por intermédio de pesquisas de campo e em arquivos, de contatos pessoais, de reuniões e de trabalhos políticos com muitos índios e diversos povos específicos, especialmente
como presidente da Funai (2003-2007), tudo isso ao longo de quase 40 anos ininterruptos. Para o antropólogo que viveu meses a fio em aldeias dos índios Guajajara (que têm mais de 400 anos de convivência com a civilização luso-brasileira), dos Urubu-Kaapor (“pacificados”
em 1928), e entre vários subgrupos Guajá (alguns dos quais ainda permanecem autônomos, isto é, fora do relacionamento com a Funai, ou mesmo com outros segmentos indigenistas, como o Conselho Indigenista Missionário – Cimi – da Igreja Católica), a leitura da história brasileira, no que concerne aos índios, ganha uma coloração mais íntima, e mesmo as informações e os dados mais recônditos, as invencionices de cronistas e a má-fé interpretativa de historiadores oficiosos podem ser compreendidos e interpretados com mais segurança quanto ao conteúdo e ao sentido da presença indígena nessa história. É claro que o historiador sensível é capaz de discernir o significado da história indígena, mesmo sem ter tido conhecimento pessoal direto e culturas indígenas – e alguns o fizeram, como Capistrano de Abreu e João Francisco Lisboa. Mas a visão histórica se torna muito mais rica e densa se você experimenta a vivência prolongada numa aldeia; acompanha durante semanas a marcha forçada de um povo pela floresta, sendo transferido de um território para outro; administra sem recursos médicos uma epidemia de gripe que abate e arrasa um punhado de homens, mulheres e crianças; presencia o trabalho de um velho missionário capuchinho no seu mister de catequese de ‘desobriga’; compartilha do pavor coletivo de um povo diante do perigo de um ataque de invasores; discute com fazendeiros e comerciantes de pequenas cidades e povoados que têm desavenças com índios, com quem vivem em relação de exploração econômica, repúdio social e, ao mesmo tempo, de compadrio
condescendente; se esforça para convencer autoridades e burocratas de uma ação necessária para a sobrevivência de um povo, e não logra resultados positivos; vê o relacionamento tenso e ambíguo entre índios e lavradores sem terra; e exerce por quase quatro anos a presidência do órgão oficial indigenista, sentindo na pele as agruras da ineficácia do Estado brasileiro e as pressões de todos os lados. Enfim, tudo isso faz a sua compreensão do que foi um “descimento” se enquadrar numa realidade concreta, tangível, não só imaginada, aguçando desse modo a sua interpretação histórica daqueles momentos e do momento atual. Entende-se por descimento a transferência forçada de mais de 1.500
índios, de uma só vez (amarrados alguns, seguindo cabisbaixos a maioria), de seus territórios para vilas portuguesas – como aconteceu tantas vezes nos três primeiros séculos de colonização: as missões, os ataques de bandeirantes paulistas e de bugreiros, mais recentemente, as guerras de extermínio, as epidemias devastadoras, as quedas populacionais abruptas e irreversíveis, a formação do mundo rural brasileiro por cima dos índios e de suas terras, e outros fatos históricos mais.

Essa “vantagem” do antropólogo é em tese, claro. O olhar pessoal e as carências intelectuais também fazem molecagens no pensamento de qualquer autor. Esta é uma condição possível do trabalho do antropólogo brasileiro da atualidade e um privilégio cultural que muitos brasileiros podem viver, e a partir dela avançar no conhecimento da sua
realidade social. Muitas vezes não nos damos conta de que tal vantagem é um fator metodológico de importância transcendental, porque insere o pesquisador numa realidade histórica que pode ser vivida e observada por todas as perspectivas possíveis, no meu modo de ver teórico, hiperdialeticamente.10 Embora as nossas academias insistam em seguir o modelo exterior, não é mais necessário que o trabalho antropológico consista num esforço temporário de pesquisa, seguido pela elaboração de uma tese, a partir da qual se vai extrair por muitos anos o material empírico para se elaborar ideias e teorias dos mais diversos matizes e satisfazer todos os gostos de moda. No Brasil, o material empírico está
a algumas horas de voo, no máximo a poucos dias de barco; está nos arrabaldes das cidades, nos hospitais e casas de saúde, nas faculdades públicas e mais frequentemente nas privadas, viajando para reuniões em Brasília e no exterior, e nos corredores do Congresso Nacional. Está hoje, como esteve ontem, nos escritos e nos relatos de muitos indigenistas, antropólogos e índios – e estará amanhã. Tal realidade se sobrepõe com muito dinamismo à estratégia de pesquisa de estudiosos de outros países. Quantos não têm sido os antropólogos que já vêm ao Brasil sonhando em ser os primeiros a estudar um determinado povo, desprezando o conhecimento anterior, mesmo que fosse elaborado pelos cânones da metodologia oficial, e voltaram aos seus países pensando e aspirando que fossem os últimos, por bem ou por azar? Depois, os seus pesquisados vêm à luz da realidade brasileira e queixam-se: o que falaram deles não é exatamente assim ou não tem sido mais por muito tempo. O conhecimento sobre a estrutura de uma sociedade se refaz em virtude tanto do tempo mutável em que foi adquirido, quanto da própria mutabilidade desta estrutura. A estratégia hiperdialética do conhecimento é, portanto, um princípio metodológico, o conhecimento de uma realidade e a realidade do conhecimento.

Nesses tempos sentimo-nos seguros de anunciar que a antropologia indígena brasileira pode ousar mais no conhecimento e na ação sobre a realidade brasileira, sem sentir-se compungida a buscar fórmulas de conhecimento em outras plagas. Não, quiçá, por virtudes próprias, mas pela realidade cultural e política que se lhe impõe. 

Mas isso não vem de agora, como uma mutação. Existe uma tradição na antropologia brasileira que dá raízes e mantém uma linha de continuidade. O pioneiro inigualável dessa tradição é o alemão naturalizado brasileiro, Curt Nimuendajú (1883-1945), que viveu 40 anos de sua vida percorrendo praticamente todo o território brasileiro, conhecendo pessoalmente quase todos os povos indígenas da época, lendo e pesquisando com rigor livros etnográficos e históricos, perscrutando os arquivos brasileiros, batalhando incessantemente pela causa indígena que abraçara com tanto ardor e comprometimento, a ponto de quase virar índio, de se naturalizar brasileiro com sobrenome indígena, sem, no entanto, deixar de registrar as mais preciosas informações sobre esses povos e suas histórias, de elaborar análises e interpretações das mais férteis que existem na historiografia indígena. Quando morreu, em 1945, numa aldeia dos índios Tikuna, no alto Solimões, Nimuendajú deixava um rico e precioso acervo de obras, a maioria das quais permanece inédita no Brasil, sob a guarda, há tanto tempo, do Museu Nacional. Suas monografias sobre os índios Guarani, Xerente, Timbiras, Apinajé e Tikuna e o seu Mapa Etno-Histórico do Brasil e Adjacências11 constituem alicerces do conhecimento antropológico sobre os povos indígenas, fundamentam uma metodologia especial e representam a figura excepcional de um intelectual engajado.12

O outro pilar da antropologia indígena é também teuto-brasileiro. Trata-se do professor Herbert Baldus. Embora Nimuendajú tenha pesquisado com afinco a história indígena, foi Baldus, no Museu Paulista, quem se dedicou à tarefa de agregar e sistematizar as fontes da etno-história indígena, produzindo uma obra de grande vulto: Bibliografia crítica da etnologia brasileira (1954-1968).13 Praticamente tudo que está publicado sobre índios até então se encontra nessa obra, comentada e indexada. Tanto Baldus quanto Nimuendajú são pioneiros em inserir o índio nos contextos históricos que o envolvem não de uma forma ilustrativa, como se fazia na antropologia praticada na época, mas como parte integrante, perdendo e reagindo, se extinguindo, fugindo ou transformando-se em função de uma dinâmica cultural própria e por força das compulsões que sofria. Essa forma de pensar a antropologia tem um exemplo notável no trabalho de Florestan Fernandes sobre os índios Tupinambá, realizado em duas etapas entre 1949 e 1952. Nos livros A organização social dos índios Tupinambá Função social da guerra na sociedade Tupinambá, e em outros artigos, os Tupinambá são interpretados academicamente pelo viés funcionalista, porém, de fato, por uma metodologia histórica de grande força dinâmica, na qual as diversas instituições sociais desses índios são analisadas por suas estruturas próprias e pela totalidade que formam em si e em confronto com outras totalidades sociais externas,
inclusive a vinda dos portugueses e franceses. Por outro lado, essas obras provam cabalmente que os Tupinambá não foram passivos à chegada dos invasores, mas reagiram valorosamente, sendo derrotados por motivos que veremos mais adiante.14

Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão são os dois grandes antropólogos que consolidam essa tradição Nimuendajú/Baldus nas suas pesquisas e na sua dedicação à causa indígena. Ambos trabalharam no Serviço de Proteção aos Índios, ao lado do venerando Marechal Rondon, organizando e fomentando o estudo empírico, a documentação histórica e cinematográfica e o conhecimento sistemático sobre os índios, e sugerindo novos modos e práticas indigenistas. Darcy Ribeiro passou dez anos no SPI (1948-57), pesquisou as culturas e os relacionamentos interétnicos dos índios Xokleng, Kadiwéu, Bororo, Urubu-Kaapor e outros mais, fundou o Museu do Índio, dedicado à luta contra o preconceito
indígena no Brasil, e elaborou os argumentos para a criação do Parque Indígena (antes Nacional) do Xingu, marco do indigenismo brasileiro da década de 1950, colocando a defesa do índio em aliança com a preservação da natureza e do patrimônio ambiental da nação como um todo. O seu trabalho no spi, como o de outros intelectuais, aglutinava os esforços do intelectual e do político, do pensador e do administrador, não fazendo distinção valorativa entre o antropólogo e o indigenista. Eis a razão da fertilidade do indigenismo lato sensu àquela época, ganhando o reconhecimento da Unesco, da Organização Internacional do Trabalho (oit), inclusive pela segunda indicação de Rondon ao prêmio Nobel da Paz e a utilização de muitos conceitos do indigenismo brasileiro nos seus dois principais documentos sobre direitos dos povos indígenas, as convenções 107 e 169. A Convenção
169, de 1989,15 dá um grande salto de valorização dos povos indígenas no panorama mundial, acompanhando a consciência universal da sobrevivência e da consequente permanência do índio no mundo. Incorpora as experiências de autonomia indígena em muitas partes do mundo e, na minha visão, toma emprestado, sem reconhecê-lo, muito
da atitude pró-indígena contida no Estatuto do Índio, de 1973, promulgado pelo governo Médici (1969-1974), porém influenciado direta e indiretamente por antropólogos e indigenistas comprometidos com a questão indígena, e por juristas partidários da visão do indigenato16 na história do Brasil.17 Com a Funai (criada para substituir o spi em 1967), a unidade do pensador com o ativista vai ser quebrada propositadamente pelos militares, como tática de manipulação da opinião pública e das forças pró-indígenas no país, para ser recuperada ao fim do período ditatorial brasileiro, redimindo o papel da Funai.

A principal obra antropológica de Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização, concebida e parcialmente escrita na década de 1950, mas publicada em 1970, constitui a mais importante síntese interpretativa do conhecimento até então sobre os povos indígenas e suas relações com a história do desenvolvimento do Brasil no século xx. Sua tese principal
é a de que as culturas indígenas, que podem ser analisadas como parte de um processo evolutivo das sociedades humanas, são autossuficientes e integradas numa lógica própria, e não se diluem em outras culturas, consideradas, sob o ponto de vista produtivo, superiores, embora possam adaptar-se às circunstâncias exógenas e desenvolver instituições que as integrem social e economicamente àquelas culturas e sociedades.
Nesse processo, que pode ser concebido como um diálogo, mas que, em geral, é caracterizado por uma dominação política, as culturas mudam e se transfiguram, criam novas modalidades de ser, mas nunca se assimilam, não se autodestroem. Mas podem ser destruídas.18

A concepção intelectual e a metodologia usada neste livro de grande visão integrativa se situa no âmbito de pensamento daquilo que podemos chamar de paradigma da aculturação, seguindo a concepção do filósofo da ciência Thomas Kuhn. O paradigma da aculturação é
um conjunto variado de ideias, proposições, preconceitos, intuições, análises, teorias, sentimentos e atitudes, que remontam ao Iluminismo, passando pela teoria da evolução, por Darwin, Marx, Durkheim e Malinowski, pelo positivismo e por quase todas as escolas antropológicas, até recentemente, que declara a eventual e inevitável extinção das
culturas e sociedades indígenas diante da inexorável força de expansão da civilização ocidental. As análises e interpretações daquele livro, portanto, pautam-se por esse espírito, como o fazem todos os estudos da época. Entretanto, antes de ser frio ou indiferente, permeia no livro um sentimento de indignação e pesar, de horror e desesperança, que projeta, nas conclusões de cada interpretação elaborada, uma visão de rigor científico mesclado pela insatisfação humanista do autor. Nesse contexto, pode-se compreender a formulação do conceito de transfiguração étnica, isto é, de que as sociedades indígenas não se assimilam nem se aculturam, mas se recriam em novas sínteses culturais, como
uma tentativa do autor de transcender à camisa de força do paradigma da aculturação. Por ele, é refutada a inevitabilidade da extinção, são sugeridas formas de acomodação e denominação política, econômica e cultural da sociedade dominante (brasileira) sobre a dominada (indígena), e espera-se uma melhor sorte, de algum modo, para os índios. O livro, ao usar esse conceito como espinha dorsal, ganha um sentido de prospectiva de grande alcance, sinal de que captava indícios da reversibilidade histórica na demografia indígena. Porém, o conceito de transfiguração étnica não chegou a ser utilizado por outros antropólogos da época. Outras correntes teóricas, outras temáticas que também se enquadram na tentativa de explicar as novas condições de sobrevivência étnica iriam
dominar as últimas décadas do século passado e a primeira deste século.

Eduardo Galvão foi um grande pesquisador de campo, um apaixonado pelo seu ofício, tendo começado a fazer pesquisas aos 17 anos, em 1939, quando esteve entre os índios Tapirapé, no rio Araguaia, até praticamente a sua morte, em 1976. Conheceu e estudou dezenas de povos e situações interétnicas, por toda a bacia amazônica, por Mato Grosso e no Maranhão. Escreveu artigos sobre aculturação e mudança cultural, sobre a integração endógena dos índios do alto rio Negro e do alto Xingu, criando a noção de “compressão cultural” para caracterizar esse processo, e dedicou-se ao estudo da produção e difusão de elementos da cultura material, como o propulsor de flechas, a cerâmica e alguns dos principais cultígenos sul-americanos. Pesquisou e engajou-se com o caboclo amazônico, descobrindo no seu sistema cultural e nas suas crenças religiosas uma ligação direta com os povos indígenas de quem descendem. Foi, verdadeiramente, um seguidor de Nimuendajú, temperando sua carreira com uma visão política de larga amplitude e
generosidade. Alguns dos seus artigos foram editados postumamente com o título Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Um dos mais influentes é o que classifica os povos indígenas brasileiros por áreas culturais, um conceito criado pela antropologia norte-americana que buscava compreender a similitude de culturas que têm histórias e
gêneses linguísticas diferentes. Propôs 11 áreas culturais para o Brasil, utilizando-se de critérios diversos, como tipo de cultura, relacionamento intraétnico, compressão cultural, adaptação ecológica e contato externo. Publicou o seu estudo sobre o caboclo amazônico em Santos e Visagens e, junto com Charles Wagley, uma monografia sobre os índios Tenetehara (regionalmente conhecidos como Guajajara) intitulada Os índios Tenetehara: uma cultura em transição. Galvão foi também pesquisador do Museu Nacional, onde iniciou sua carreira, e do Museu Paraense Emílio Goeldi; ajudou a implantar, com Darcy Ribeiro, no Museu do Índio, o primeiro curso de pós-graduação em antropologia no Brasil, e depois fundou e foi diretor do Instituto de Ciências Humanas da recém criada Universidade de Brasília, de onde saiu cassado em 1965.19 

Para os nossos propósitos aqui, reconhecemos a importância de Galvão, sobretudo porque foi ele o primeiro antropólogo brasileiro e certamente um dos primeiros no mundo, a pôr em dúvida a inexorabilidade do processo de extinção dos povos indígenas, ao repensar a conclusão que fizera, com Charles Wagley, sobre o destino dos índios Tenetehara. Eis como analisa a questão, em 1955, na introdução brasileira ao livro originalmente publicado em inglês em 1949, baseado em pesquisas feitas entre 1941 e 1945.

Concluímos com a afirmação de que dentro do espaço de vida de
uma geração, ou pouco mais, o processo de mudança dessa cultura tribal
indígena para uma regional, brasileira, estaria em vias de se completar.
Afirmação esta que tem valido algumas críticas. Umas que a consideram
otimista, outras que põem sérias dúvidas sobre a possibilidade de
realizar-se o processo assimilativo. As dúvidas têm fundamento. Muitas
tribos indígenas existem, até o presente, que têm resistido, e nada indica
que não resistirão no futuro, ao processo de integração à comunidade
brasileira. Em muitas situações de contato, a resultante não se traduz
em assimilação do tipo que descrevemos para os Tenetehara, mas em
despovoamento, em desmoralização da sociedade indígena que, não resistindo
ao traumatismo de uma situação adversa, se decompõe. A brutal
diminuição da população indígena, hoje reduzida a cerca de 100.000
indivíduos, é um exemplo. Outras tribos, graças a um mínimo de condições
favoráveis, mantêm cultura e organização próprias, embora com
muitos elementos modificados pela influência de brasileiros. É preciso
estudar os casos especiais de resistência e os de assimilação.20

À sua brilhante intuição, Galvão logo adiciona uma proposta de temáticas de estudos: assimilação e resistência. Até a década de 1970, a maioria dos estudos de relacionamento interétnico seria sobre assimilação ou aculturação, embora sob perspectivas mais críticas, com conteúdo histórico e sociológico de maior densidade do que os clássicos estudos sobre aculturação e mudança social da antropologia anglo-americana. Depois viriam a ser sobre os processos de resistência e sobrevivência étnica, em que os índios são vistos em princípio como vitoriosos, ou, pelo menos, não como perdedores indefectíveis.

Roberto Cardoso de Oliveira, um dos primeiros estudantes do curso de antropologia do Museu do Índio, foi um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento de estudos, pessoais ou por influência como professor, tanto dos temas de assimilação e acaboclamento – os quais denominou “estudos de fricção interétnica” –, como, após 1972, pelo tema da resistência, através da introdução, no país, da discussão sobre o conceito de identidade étnica, como fator de resistência e sobrevivência dos povos indígenas.21 Esse conceito serviu de fundamento básico para diversos estudos sobre sociedades indígenas e mesmo sobre outras minorias no país, como comunidades rurais, negras ou caboclas, minorias culturais e sexuais urbanas, movimentos sociais e políticos etc.22 Cardoso de Oliveira prosseguiu em sua carreira trazendo temas diversificados que estavam na moda nos países centrais da antropologia, tais com a análise de identidade étnica por ênfase metodológica nas interações sociais (não mais cultural) e o multiculturalismo, ambos com pertinência à temática indígena. Um dos seus estudantes, João Pacheco de Oliveira, depois de fazer uma revisão do estudo de seu mestre sobre a integração dos índios Tikuna à sociedade de classes, e vendo que aqueles índios continuavam a ser índios, embora com mudanças culturais, abre uma nova senda de pesquisas sobre a situação étnica e social dos índios do Nordeste, precisamente aqueles que mais tinham sofrido a opressão luso-
brasileira e ainda mantinham teimosamente sua identidade indígena. Sua grande contribuição aos estudos sobre populações indígenas, com consequências políticas positivas ao indigenismo brasileiro, foi a aplicação da noção de “etnogênese”, trazida da antropologia inglesa sobre a urbanização de populações tribais na África. Expungindo a verborragia do filósofo Gilles Deleuze, utilizada por Pacheco, que aplica o termo “territorialização” para significar os modos de formação de identidades, entende-se por etnogênese o processo de reaglutinação de comunidades de pessoas que vivem um destino comum em torno de uma visão de identidade própria, separada da identidade cultural corriqueira das pessoas antes vizinhas, a partir de então caracterizadas como fora do novo grupo autorreconhecido. Uma nova identidade se forma a partir da memória de um passado, em geral com aspectos históricos, mas também religiosos e míticos, que relembra aos novos membros uma visão mais generosa de sua vida pregressa e uma promessa de uma vida melhor a partir da nova identidade. 

Com essa atitude, e ajudados por associações de indigenistas e de religiosos católicos, com suporte do órgão indigenista e do Ministério Público Federal (MPF), diversos grupos de caboclos nordestinos e de ribeirinhos amazônidas alçaram-se em movimentos de constituição de novas identidades e, ademais, de reconhecimento por parte das autoridades, tais como os órgãos indigenista, de saúde e educação indígenas, o MPF e outros, dessa identidade. O que os motiva é, em essência, a vontade de uma nova identidade fora da corriqueira identidade de gente rural pobre e destituída, mas é, complementarmente, a segurança de uma maior proteção econômica e oportunidades
sociais que a identidade indígena bem ou mal lhes proporciona.

Com uma ênfase maior no aprofundamento da análise histórica, em que os povos indígenas são interpretados como totalidades histórico-político- culturais, agindo e reagindo ao contato externo por compulsionamento e por consciência parcial da sua realidade, foram desenvolvidos estudos que demonstram a qualidade da fusão que deve haver entre a
sensibilidade histórica, o senso do real e a ansiedade do imaginado, isto é, entre o historiador, o político e o cientista. O livro Índios da Amazônia: de maioria a minoria, e seu livro sobre a política indigenista do Império, Os índios e a ordem imperial, de Carlos de Araújo Moreira Neto, são exemplos dessa contínua busca de adaptação metodológica e criação teórica para explicar o universo empírico da antropologia brasileira atual.23 Antes de ser publicado, esse texto foi passado de mão em mão em caderno mimeografado como estudo exemplar e pioneiro da história do Brasil focada na questão indígena. Nele constam análises eruditas dos dados encontrados nos relatórios dos presidentes de província de todo o Brasil, demonstrando não somente os meios e políticas abertos e escusos que levavam a elite imperial e os novos “bandeirantes”, criadores de gado, comerciantes das novas cidades a açambarcar as terras indígenas, como explicita a cooperação e a conivência dos novos missionários nesse mister. Ao longo de quase setenta anos de independência, o Brasil arrefeceu pouco o legado que recebera dos portugueses.

Nessa linha de abordagem, mas com uma perspectiva localizada e menos pessimista, situo o meu livro sobre a etno-história dos índios Tenetehara, O índio na históriaa saga do povo Tenetehara em busca da liberdade. Fruto da minha primeira pesquisa com esses índios, que redundara numa tese de doutorado, esse livro me levou 23 anos para ser concluído, durante qual tempo voltei diversas vezes a aldeias teneteharas e pesquisei em arquivos os mais evidentes como a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Arquivo Público do Pará, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, até os arquivos paroquiais de pequenas cidades
do Maranhão, como Viana, Pindaré-mirim e Godofredo Viana. Esse livro procura demonstrar que a história indígena não é tão linear quanto pareceria, tão inexoravelmente declinante, havendo momentos de relacionamento mais fluido e outros mais agressivos, momentos de opressão e momentos de cooperação; que há fissuras no controle social sobre os índios, e, sobretudo, que os índios reagiram à opressão, às vezes pela rebelião e fugas, outras pela estratégia da convivência próxima ou distanciada. Os índios, concluo, buscam a volta ao seu status quo ante, sonham e fantasiam com a época em que reinavam soberanos, com os
tempos da liberdade e igualdade de condições com seus adversários. 

Nas décadas de 1980 e 1990, deu-se um florescer de estudos etno-históricos por antropólogos e historiadores, aqui destacados no livro editado pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, História dos índios no Brasil.24 Não restam dúvidas de que a antropologia brasileira, no que concerne ao estudo das relações interétnicas, alcançou um nível de descrição, análise e interpretação bastante rigoroso. Nos últimos quarenta anos
foram produzidas dezenas de teses com temática indígena, largamente baseadas em pesquisa de campo, algumas demonstrando conhecimento da língua indígena, alcançando um excelente nível de qualidade etnográfica. Ressalvadas as proporções nas grandezas étnicas, a antropologia brasileira se compara com a antropologia mexicana, até pelo seu aspecto do compromisso político com o seu objeto de estudo. Se ainda nos falta uma gama mais extensa de etnografias, cobrindo o espectro das culturas indígenas, isso se deve aos seguintes aspectos: preocupação do antropólogo-cidadão brasileiro com os estudos que valorizem o conhecimento das possibilidades de sobrevivência dos índios; deficiência acadêmica ao não enfatizar estudos linguísticos como base para a compreensão
das culturas indígenas; falta de estímulos institucionais e financeiros dos centros de pesquisa; contradições políticas e tensões culturais surgidas nos últimos quarenta anos que dificultam a permanência mais prolongada de antropólogos entre os índios. As pesquisas etnográficas acontecem muitas vezes motivadas por temas teóricos de curto fôlego, mas que viram uma espécie de moda. Dezenas de teses e artigos foram produzidos sob inspiração de uma temática menor proposta por Lévi-Strauss no seu portentoso livro sobre o parentesco, As estruturas elementares do parentesco, por sua vez um recorte reducionista desse grande tema antropológico inventado ainda no século xix, pelo pioneiro da antropologia Lewis Henry Morgan. Tratava-se de demonstrar que os sistemas sociais dos povos indígenas das chamadas terras baixas da América do Sul – que incluem todo o Brasil e mais as vertentes orientais dos países andinos – se baseiam na rivalidade entre primos cruzados, isto é, entre os primos que são filhos de uma irmã e de um irmão, potencialmente
parceiros casadoiros, ao contrário dos filhos de dois irmãos do mesmo sexo (neste caso, chamados de primos paralelos e que se consideram irmãos entre si). Com tal foco e com um malabarismo intelectual digno de admiração, esses trabalhos terminavam relevando todo
o mais do sistema de parentesco, da liturgia do poder, da relação do sistema sociopolítico indígena com o mundo de fora, e da sociabilidade dessas sociedades.

Em contrapartida, a maior carência da antropologia brasileira em relação a estudos sobre sociedades indígenas diz respeito às economias indígenas e à relação delas com o mundo circundante. Todo mundo que trabalha com índios sabe que raros são os casos de economias indígenas autossuficientes. Naturalmente, quando viviam para si, autônomas, essas sociedades produziam o suficiente para sobreviver, sempre com algum excedente para os momentos de carência, como uma safra perdida por falta de chuvas no tempo certo ou destroçada por uma vara de porcos queixada. Porém, o convívio com a sociedade brasileira produz novas necessidades, desde o simples sal, passando por panelas, facões, roupas, calçados, chegando a rádios, fogões, geladeira, televisão, e, agora, computadores
e objetos de adorno, todos os quais custam dinheiro. Como obter esses objetos? Nos casos mais simples, há doações por parte da Funai ou de outras instituições. Mas o limite de doações logo é alcançado, enquanto o desejo de ter mais e mais variado é bastante elástico. Cabe saber como as economias podem se desenvolver de dentro para fora,
encontrar bens e produtos que podem ser vendidos e aumentar sua produtividade, sem transformar suas sociedades em sistema de produção.

Nessa carência de conhecimento há uma imensa falha da antropologia brasileira.25 Por fim, compele reconhecer que uma parte de nossa lacuna etnológica é preenchida pelas teses de pesquisadores estrangeiros, cuja preocupação maior se focaliza em temas como cultura, organização política, relação com meio ambiente etc., não no seu relacionamento
interétnico, devido, certamente, à sua própria condição de estrangeiro e de necessidade de voltar a seus países para seguir suas carreiras. Não podemos deixar de mencionar aqui, ainda que brevemente, os estudos de arqueologia brasileira. Há efetivamente uma tradição arqueológica brasileira que discute grandes temas relacionados à presença do homem nas Américas, e no Brasil em particular, com adaptações culturais a todos os meios ambientes do nosso território, com as mudanças de sistemas econômicos e sociais entre sociedades indígenas. Inclusive, há demonstrações de que no passado já houve sociedades mais densas demograficamente e poderosas politicamente. 

Em sua grande maioria, o interesse antropológico cientificamente relevante trata de conhecer o passado pré-colombiano das sociedades indígenas, ainda que haja bons
estudos sobre como os índios viveram nas missões ou em terras de onde foram expulsos já em tempos recentes. Enfim, há dezenas de povos indígenas brasileiros que precisam ser
conhecidos mais intimamente, pelo que pensam do seu mundo, pelo que produzem de conhecimento, por seus modos de viver e, sem dúvida, pelas suas perspectivas de continuidade étnica. O trabalho de produzir monografias (que é um dos polos fundamentais do conhecimento antropológico) não tem necessariamente de ser feito nos moldes tradicionais concebidos e estilizados no início do século xx. Faz-se necessário que se incorporem na própria metodologia do trabalho as condições políticas e culturais do Brasil e da tradição antropológica brasileira, e que essa metodologia se conceba como um instrumento integrativo da história e da estrutura, tanto nas análises sobre as relações interétnicas que determinado povo tem com o mundo envolvente, quanto nas análises e teorizações sobre a própria cultura estudada. Uma monografia não precisa ser descritiva e estática, nem se pautar pela busca obsessiva de novidades etnográficas – uma verdadeira mania da antropologia enquanto disciplina acadêmica, a qual, muitas vezes, resulta na impossibilidade de aferição dos dados pelo que eles vêm a ter de exótico e esdrúxulo. A singularidade de culturas e povos deve ser compreendida como parte da diversidade humana, o que implica também o tema da comparação e de sua universalidade. Se concebermos a cultura como uma relação humana tanto consciente quanto inconsciente, regida pelo social e pelo individual, e se localizarmos essa dialética numa perspectiva
histórico-estrutural, de envergadura hiperdialética, com um sentido de continuidade cultural, transcenderemos as teorias que reduzem os povos indígenas, necessariamente, a seres inferiores, dominados por formas de pensamento baseado em preceitos imutáveis e sem história.

O presente livro não trata de expor as bases teóricas da antropologia hiperperdialética, já abordada no meu livro homônimo. A exposição e discussão da temática indígena, tratada como uma questão de interesse mais amplo do que normalmente se concebe na antropologia tradicional, é orientada pela visão hiperdialética. Por ela, o índio – ou as sociedades, culturas e povos indígenas – é concebido um ser único, em si e para si, que se opõe a outras entidades semelhantes, formando relações de convivência ora amistosas ora confrontantes, em círculos e contextos cada vez mais amplos. É dizer, os índios são seres que estão na história, pois mantêm suas culturas por decisão própria, semelhantemente a outros povos e culturas. São parcialmente tanto conscientes quanto inconscientes de suas potencialidades, virtudes, carências, desequilíbrios e destino. Em relação direta com a sociedade brasileira forma-se uma temática própria, de cunho político, uma questão. Definimos essa questão como o conjunto dos povos indígenas e das forças que os envolvem, formando uma estrutura de relações num eixo temporal, e obtendo o seu sentido
pela luta interna, pela reflexão consciente e por suas conexões com a amplitude dos povos e culturas de todo o mundo. O índio, assim, é compreendido por si e em relação com o todo. A explicação para a sua sobrevivência ou o seu extermínio advém desse princípio metodológico.

Na relação com o mundo, o índio toma autoconsciência de sua existência mais ampla e age, ao modo possível que lhe é dado, para se entender com a nova realidade. Perder ou ganhar, não se pode saber; importa é que vive na luta por sua continuidade e ascensão político-cultural.

O escopo de meu trabalho é a história indígena, suas derrotas e perdas, mas também suas pequenas, porém significativas, vitórias e ganhos. Abordo essa história a partir de dois pontos de vista – do índio e da civilização brasileira –, com enfoque para a opinião que temos a respeito do índio, o que este pensa sobre o Brasil, seu presente e sobre suas perspectivas futuras. Este livro é impregnado, necessariamente, pelos sentimentos da indignação e do inconformismo. Mas quer alentar também um rasgo de esperança, justificado pelos acontecimentos mais recentes e por novas interpretações históricas que mostram não somente a face negativa, mas também a positiva do tempo presente, e nos auxiliam a divisar as possibilidades do futuro.

"Conheça um pouco sobre os Índios Potiguara da Paraíba
8 - Potiguara 20554"

Índios Potiguara da Paraíba em Foco

Via:  Blog do Mércio: Índios Antropologia, Cultura. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário após a aprovação será postado,obrigado!