A audiência, promovida pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, do Ministério Público Federal, contou com a presença de lideranças indígenas de diversas regiões do país, do presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa, do secretário Paulo Roberto Martins Maldos, da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, representantes de organizações da sociedade civil que atuam em defesa dos direitos dos povos originários, membros da Procuradoria Geral da República (PGR), da Comissão Especial de Defesa dos Povos Indígenas da OAB e de representantes da Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas.
O presidente da Funai, na ocasião, reafirmou a posição institucional já publicada por meio denota: "Nossa posição é contrária, e ela vem na mesma posição de quase cem anos de defesa dos direitos dos povos indígenas". Indo além, analisou ainda a atual avalanche conservadora que intenta atacar os direitos dos povos indígenas, os movimentos sociais e o direito à terra, utilizando-se, para isso, de mecanismos como as Comissões Parlamentares de Inquérito que buscam criar elementos para desqualificar o trabalho das instituições que defendem os direitos de comunidades tradicionais, como a Funai e o Incra, e o trabalho técnico de antropólogos que dão voz a essas populações por meio de seus relatórios. "Nós vivemos um momento muito difícil no Brasil. Além das PECs, os parlamentares ainda emendaram uma CPI contra a Funai e o Incra. Eu estou, como a Funai está, ao lado dos povos indígenas do Brasil", completou.
Para a deputada Érika Kokay, a PEC 215 nasce da concepção de um segmento da sociedade brasileira para o qual "o patrimônio é o sentido da própria vida, e não os seres humanos". Nesse sentido, entende que lutar contra a PEC 215 é lutar contra a violação de direitos em todas as suas formas; é lutar contra o arbítrio.
A deputada entrou também com um mandado de segurança visando impedir a instalação da CPI da Funai e do Incra, tendo em vista a inexistência de fato determinado para investigação que justifique sua existência. No mesmo sentido se posicionou o presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Antônio Carlos Souza Lima, para quem o objetivo da CPI é negociar a verdade, mediante a criminalização de antropólogos e de laudos antropológicos.
A advogada indígena Joênia Carvalho Wapixana, representante da Comissão Especial de Defesa dos Povos Indígenas da OAB, reforçou o posicionamento da Ordem dos Advogados do Brasil pela inconstitucionalidade da Proposta de Emenda à Constituição.
"Precisamos envolver toda a sociedade brasileira"
A conclusão de que a PEC 215 ataca não só os povos indígenas, mas a toda a sociedade brasileira, foi tema comum da audiência. Para Joênia, é fundamental envolver os demais segmentos da sociedade: "Nós tivemos o apoio de vários movimentos sociais na luta pelo reconhecimento dos nossos direitos na Constituição Federal de 1988. É preciso voltar e retomar esses apoios nesse momento. Precisamos chamar a sociedade brasileira nessa campanha contra a PEC 215".
A vice-procuradora geral da República, Ela Wiecko, pontuou a relevância da audiência, ao reunir pessoas com o mesmo pensamento e as mesmas solidariedades na construção de estratégias de enfrentamento às ameaças em curso. Igualmente importante é a possibilidade de trazer a palavra de novas gerações de indígenas e quilombolas às gerações da sociedade que não viveram antes de 1988. Nessa linha, destacou que ainda se vive em um conflito não superado que se manifesta entre distintos modelos econômicos, políticos e jurídicos de sociedade.
No mesmo sentido, o secretário Paulo Maldos propôs uma articulação para colocar para a sociedade brasileira que "o que se está em risco é também uma concepção de país desenhada a muitas mãos, e que prima pela diversidade, pela pluralidade, pelo direito à diferença e pela participação social como valores a serem preservados". Para tanto, defendeu o estabelecimento de um canal de diálogo permanente com os diversos segmentos da sociedade brasileira que traga a defesa dos direitos dos povos indígenas em confluência com a defesa dos demais direitos da sociedade, tendo em vista que a luta dos indígenas foi vanguarda para garantir a existência dos direitos constitucionais que se tem hoje.
A liderança Matupira Kayapó também reforçou o discurso de união presente no encontro, ao apresentar aos presentes o "Manifesto dos Povos Originários contra a PEC 215 e pela proteção da natureza em sua totalidade". O texto, que discorre sobre as razões da mobilização nacional indígena em torno do tema, apresenta a proposta como um problema de toda a sociedade: "Viemos aqui deixar um recado claro aos deputados e senadores que irão analisar esta proposta nos próximos dias. Não aprovem a PEC 215. Estamos chamando todas as pessoas preocupadas com o nosso planeta e com o futuro dos nossos netos para que se juntem também à nossa luta. Toda a humanidade irá sofrer; todos já estão sentindo as mudanças climáticas". E conclui: "Não daremos nenhum passo atrás. A PEC 215 é uma proposta de genocídio de toda humanidade, pois todos dependem da natureza para se alimentar e sobreviver. Vamos à luta!"
Mobilização Nacional Indígena
Povos indígenas de diversas regiões do país estão se organizando com o revezamento de delegações em vigília e protesto permanente em Brasília. Segundo a representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara, a mobilização permanente se estenderá até o recesso parlamentar.
"Precisamos ficar alertas. Ano passado, só conseguimos arquivar a PEC por causa da nossa mobilização permanente. Esse ano, precisamos dar continuidade, porque a nossa presença inibe; eles têm medo. Quando a gente está aqui, a gente também dá força para os deputados que são nossos aliados. Não podemos recuar. Se nós não estamos conseguindo avançar, eles também não estão, por causa da nossa presença. O maior símbolo da nossa resistência é a nossa existência e a nossa presença aqui", concluiu.
Entenda a PEC 215
A Proposta de Emenda à Constituição PEC 215/2000 modifica os artigos 45, 61 e 231 da Constituição Federal, e os artigos 67 e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de alterar o procedimento de demarcação de terras ocupadas por povos indígenas e por remanescentes das comunidades dos quilombos.
Ao modificar o texto constitucional, a PEC 215 retira dos povos indígenas diversos direitos, o que, na prática, constitui-se como uma paralização indeterminada de todo e qualquer procedimento de reconhecimento da ocupação indígena no território nacional e, ainda, abre amplas possibilidades para que esses territórios possam ser invadidos e explorados por não indígenas.
Nesse sentido, a proposta retira-lhes o direito ao usufruto exclusivo de suas terras, na medida em que estabelece exceções para a instalação e permanência de "ocupações configuradas como de relevante interesse público da União"; permite a instalação e a intervenção de forças militares e policiais, independente de consulta a essas comunidades, bem como a instalação de empreendimentos diversos e de unidades de conservação em terras indígenas.
Também impõe as seguintes condições ao procedimento de demarcação: veda a ampliação de terras indígenas já demarcadas, impossibilitando a correção de vícios, distorções, injustiças e a possibilidade de revisão de limites de territórios exíguos para o abrigamento de extensas populações; institui a obrigatoriedade do atendimento ao marco temporal, o que, na prática, ignora as diversas situações em que os povos indígenas, mediante violência, foram arrancados de seus territórios tradicionais, onde não estavam à época da promulgação da Constituição Federal de 1988; e, por fim, retira a competência do poder executivo de reconhecer os territórios tradicionalmente ocupados por povos indígenas, na medida em que estabelece que a demarcação definitiva das terras indígenas far-se-á por lei.
Pelas regras atuais, cabe à Fundação Nacional do Índio, ao Ministério da Justiça e à Presidência da República a decisão sobre a demarcação de terras indígenas, conforme prevê o Decreto 1.775/1996.
O direito dos povos indígenas às suas terras de ocupação tradicional configura-se como um direito originário e, consequentemente, o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas se reveste de natureza meramente declaratória. Portanto, a terra indígena não é criada por ato constitutivo, e sim reconhecida a partir de requisitos técnicos e legais, nos termos da Constituição Federal de 1988.
Ademais, por se tratar de um bem da União, a terra indígena é inalienável e indisponível, e os direitos sobre ela são imprescritíveis. As terras indígenas são o suporte do modo de vida diferenciado e insubstituível dos cerca de 300 povos indígenas que habitam, hoje, o Brasil.
Índios Potiguara da Paraíba em Foco
Texto: Mônica Carneiro/ASCOM
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