O Acre elegeu o primeiro prefeito indígena de sua história. O professor Isaac Piyãko (PMDB), de 44 anos, da etnia Ashaninka, concorreu pela primeira vez ao cargo majoritário no município de Marechal Thaumaturgo, que faz fronteira com o Peru, e venceu o atual prefeito, Aldemir Lopes, do PT. Apesar de abrigar cinco etnias, foi a primeira vez que a cidade, criada em 1992 em uma antiga área ocupada por seringueiros, teve um índio na disputa. Isaac recebeu 4.094 votos, alcançando 56,6% da preferência nas urnas.
Conheci o Isaac um mês antes das eleições e um dia após o primeiro comício dele como candidato. Eu estava na cidade de Marechal Thaumaturgo nesse dia não por uma simples coincidência, mas porque eu tinha acabado de chegar da aldeia Apiwtxa, na terra indígena Kampa do Rio Amônia, que fica a cerca de quatro horas de barco da cidade, e onde Isaac, seus filhos, seus seis irmãos, seus pais e seu povo vivem. Isaac é filho do Ashaninka Antonio com a branca dona Piti. Eles se conheceram quando brancos e índios dividiam a mesma terra, antes da demarcação ser um fato.
Fiquei oito dias na aldeia, onde moram cerca de 800 pessoas. A terra foi demarcada em 1992, com um total de 87.205 hectares e foi o resultado de uma luta dos Ashaninka contra a invasão por madeireiros ilegais e pelo reconhecimento do direito ao seu território. Na aldeia, onde é preciso caçar, pescar e plantar para comer, entendi o verdadeiro significado de viver em comunidade. A moeda de troca não é o dinheiro e a felicidade não está atrelada ao consumo.
A luta dos Ashaninka é pela manutenção da cultura indígena por meio da preservação da floresta e dos costumes, como a língua nativa, a produção dos artesanatos e a tecelagem das roupas. O modo de vida é inspirado na ancestralidade e cuidar da natureza faz parte do cotidiano, com um plano definido de gestão territorial e ambiental, com práticas de manejo de recursos naturais, recuperação de áreas alteradas e degradadas, piscicultura, etnomapeamento e vigilância territorial. Em abril de 2015 os Ashaninka firmaram um contrato com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com o objetivo de promover o manejo e a produção agroflorestal em comunidades tradicionais e indígenas no município de Marechal Thaumaturgo para que sejam criadas alternativas econômica sustentável ao desmatamento.
Há cerca de dez anos a luz chegou na aldeia Apiwtxa, mas durou pouco. O barulho do gerador e os fios espalhados não agradaram aos moradores, além de ter havido uma dispersão familiar. Ali, quando a noite vem, é o momento de conversar, contar histórias, lembrar o passado e pensar no futuro e com a luz as pessoas deixaram de se conectar umas com as outras. Concluíram que a luz da lua era o suficiente e quando até ela faltasse o breu era igualmente bem-vindo. Pediram o fim dos fios.
Mas Isaac não estava na aldeia no tempo em que estive lá. Não estava porque já tinha se mudado para a cidade com a mulher Fátima e os seis filhos para disputar a eleição. Dez dias em Marechal Thaumaturgo foi o suficiente para que eu constatasse que o lugar é daquelas cidades que precisam de tudo. Ali só se chega de avião monomotor ou barco, que em tempos de seca pode demorar até doze horas numa canoa de alumínio. Mesmo ficando no coração da Amazônia, o esgoto é despejado no rio e o lixo em suas margens. No Verão amazônico – quando não chove e os rios secam – falta de tudo um pouco lá quando o assunto é alimentação. Por dias e dias você vai ao mercado e não encontra uma única fruta. O frete não chega até lá e se chega o produto custará uma fortuna. Vez ou outra aparecem umas maçãs vindas do Paraná, mas aí fica difícil de encarar. A luz da cidade é via gerador a diesel, portanto não há silêncio nunca. Quando há é porque o gerador falhou e a eletricidade é interrompida, o que acontece quando chove, quando venta ou quando não é possível identificar qual o fenômeno meteorológico culpado.
Para chegar ao comício do Isaac, precisei pegar um barco para atravessar o rio, subir um barranco segurando uma lanterna numa mão e o chinelo na outra para não escorregar, e subir e descer algumas ladeiras. No local do evento, uma pequena multidão se aglomerava pelas ruas onde em uma das “calçadas” corria um esgoto à céu aberto. E toda essa situação me intrigou: por que um índio que vive da caça, da pesca, se veste com a roupa tradicional – kushma -, toma banho de rio e leva uma vida na natureza e perto da família se dispõe a mudar para uma cidade como Thaumaturgo para tentar ser prefeito? Marquei, então, uma entrevista com ele para o dia seguinte. Isaac me recebeu na casa dele, que está longe de ser uma morada típica Ashaninka. E foi essa a primeira pergunta que fiz a ele: Por que você quer ser prefeito?
Isaac me respondeu: “Ouvimos muito que somos caboclos e onde já se viu deixar um caboclo governar. Quero mostrar, por meio de uma boa gestão, que nós índios somos capazes também. É preciso ter respeito a todas as raças. Sendo eleito e fazendo um trabalho melhor do que os outros prefeitos, terei o reconhecimento por todo o preconceito que já sofremos.”
Durante a campanha, ele já dizia sentir falta de caçar, de pescar, de usar a kushma e do convívio familiar. Os filhos sentiam falta de tomar banho no rio. Agora que venceu e vai mesmo morar na cidade pelos próximos quatro anos, a saudade vai apertar, mas os Ashaninka estão acostumados a resistir quando a causa é nobre. Desejo ao Isaac que ele faça mesmo uma boa gestão e mostre, como ele me disse, que o índio pode tudo o que o branco pode. E mais. E melhor. Thaumaturgo merece isso. E a Amazônia também. Sorte, Isaac.
Maria Fernanda Ribeiro
Facebook: Eu na Floresta
Twitter: @mfernandarib
Instagram: @eunafloresta
Email: eunafloresta@gmail.com
Índios Potiguara da Paraíba.Com
Via: ESTADÃO - http://brasil.estadao.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário após a aprovação será postado,obrigado!